Finalmente pudemos matar a nossa curiosidade sobre Altered Carbon, a promissora série Cyberpunk do Netflix baseada no livro de mesmo nome do autor britânico Richard K. Morgan. Altered Carbon foi o primeiro livro lançado por Morgan, ainda em 2002, e o mesmo ficou milionário após vender os direitos de adaptação para a cineasta Laeta Kalogridis, que já contribuiu muito para a cultura pop no cinema (algumas contribuições foram de peso, enquanto outras tem uma qualidade duvidosa). Laeta manteve o romance de Morgan na gaveta durante quinze anos, pois nenhum estúdio se interessava em produzir um filme tão complexo e tão violento quanto este seria, e só em janeiro de 2016 que o Netflix demonstrou interesse na obra e encomendou uma série com a showrunner. Será que ela fez valer toda essa espera e conseguiu fazer jus a nossas expectativas?
É fato que atualmente carecemos muito de conteúdo Cyberpunk em todas as mídias possíveis, pois dá pra contar nos dedos todos os filmes, jogos e livros de qualidade que temos voltados para o gênero. Adaptar Altered Carbon não é uma tarefa fácil, pois não só exige milhões de dólares investidos em efeitos especiais para criar toda aquela atmosfera futurista, mas também exige roteiristas muito bons no que fazem, tamanha a complexidade e profundidade filosófica do enredo. Para fechar todo o conjunto, um elenco de peso seria necessário também, pois a grande maioria dos atores que participam dessa série devem interpretar não só uma personalidade, mas várias. Não está entendendo nada? Calma que nós vamos explicar melhor tudo isso.
A série se passa em 2384, onde a tecnologia está tão avançada que o homem conseguiu encontrar um meio de burlar a morte. Cada ser humano tem um cartucho implantado na nuca, uma espécie de HD, que armazena todas as nossas memórias e também a nossa consciência. Quando uma pessoa morre, caso o cartucho não tenha sido danificado, é possível implantá-lo em outro corpo, fazendo com que o dono do mesmo viva de novo, porém com uma fisionomia totalmente diferente. O problema é que obviamente o homem acabou usando essa magnífica descoberta para gerar lucros, e assim apenas os ricos, chamados de Matusas, tinham condições de comprarem o corpo que desejarem ou até fazerem clones de si mesmos para não perder a sua aparência original. Os pobres acabavam ficando com o resto, corpos velhos e feios que originalmente não serviriam para mais nada, e logo no começo sentimos o gostinho do quão horrível isso pode ser. Existe uma cena onde vemos uma garotinha de 7 anos, que morreu atropelada, sendo revivida no corpo de uma mulher de meia idade, e podemos ver não só na reação da menina mas também na dos seus pais como a classe baixa dessa realidade sofre nas mãos da desigualdade social.
O protagonista é Takeshi Kovacs (Joel Kinnaman), um homem que há séculos atrás fez parte de um grupo de guerreiros de elite chamados de Emissários. Takeshi trabalhava como mercenário quando acabou morrendo em uma emboscada e foi ressuscitado 250 anos depois em um novo corpo, para que usasse suas habilidades de Emissário para investigar o assassinato do Matusa mais rico da região. Kovacs é constantemente perseguido por uma policial chamada Kristin Ortega (Martha Higareda), que possui uma relação difícil com seus parentes pela mesma não seguir as crenças Neocatólicas de sua família, onde os Neocatólicos são contra a ressurreição feita pelo homem e acreditam que quando morrem, vão para o céu, e renascer em outro corpo seria um feito digno do inferno. Kovacs também contará com alguns aliados bem inusitados, como Poe, uma IA que comanda um hotel inteiro e consegue auxiliar o Emissário por meios virtuais. Poe foi um personagem bem divisor de águas nessa série, pois ele não existe no livro e os fãs mais aficionados à literatura não gostaram muito desse adendo.
Ao longo de 10 episódios a série sempre se renova, mas acaba voltando pro ponto inicial de uma forma ou de outra. Tudo começa com os passos iniciais da investigação de Kovacs, e como toda investigação, cada descoberta nova desencadeia uma série de eventos novos que fazem o enredo tomar um rumo totalmente diferente. Sinceramente, depois de alguns episódios você vai até esquecer da motivação inicial de Kovacs, e só lembrará disso tudo nos momentos finais quando tudo vier a tona novamente. Não encaro isso como uma falha no roteiro, mas simplesmente como uma forma de dizer que o foco da história não é no assassinato de Laurens Bancroft (James Purefoy) e sim totalmente no passado e no presente de Takeshi Kovacs. Alguns episódios se passam quase por completo em flashbacks do mesmo, mostrando mais de sua vida passada em seu corpo original, e vamos descobrindo mais de seus amores, sua família e todos os traumas que ele carrega consigo.
O elenco não é composto de rostos tão conhecidos, o que é um ponto muito positivo. Dificilmente você reconhecerá algum ator ali de algum outro filme (talvez com exceção de Joel Kinnaman que foi o Rick Flag em Esquadrão Suicida e o novo RoboCop), e isso torna a série ainda mais imprevisível, pois querendo ou não sempre atribuímos algumas características que costumamos relacionar com atores e atrizes que já conhecemos. O imprevisível é um fator essencial em Altered Carbon, pois é isso que constrói sua trama e consegue te prender em cada episódio, e eu diria que eles souberam trabalhar muito bem isso, onde nenhum episódio vai te passar aquela sensação de que tudo ali foi inserido só para enrolar e não tem nenhuma relevância para o enredo. O que pode sim te deixar entediado são as cenas de ação – não que elas sejam de todo ruim, mas as coreografias das lutas e como tudo é montado acaba sendo clichê demais e muitas vezes até artificial, onde você nota que aquela violência desenfreada não condiz com os movimentos e golpes dos personagens.
Falando em violência, Altered Carbon não poupa nenhuma gota de sangue. Do início ao fim nos deparamos com cenas de assassinato, espancamentos, torturas e muita nudez e cenas de sexo, então tire as crianças da sala. Não é só violência e nudez que torna a série conteúdo para maiores, mas também toda a sua complexidade, que é a cereja do bolo. A discussão filosófica envolta a tudo que a trama aborda é muito vasta, e constantemente você se pegará refletindo se o que nos torna únicos é apenas a nossa personalidade ou se é todo o conjunto de corpo e mente. Nada disso nos é respondido na série, mas é esse tipo de coisa que cada episódio nos estimula a pensar, e isso é o que nos deixa cada vez mais interessados em saber qual será o desfecho de tudo aquilo. Acredito que nem mesmo a ausência de um vilão fixo ou a constante troca de antagonistas chegue a incomodar tanto, sendo que no final tudo acaba se encaixando perfeitamente.
O que realmente fez falta nessa série, e que de longe foi a maior falha na minha opinião, foi a ausência de músicas Cyberpunk, com aquele tom futurista puxado para o synthpop/retrowave. Além de serem sensacionais, essas músicas também fazem parte da identidade do gênero, complementando todo aquele neon e hologramas gigantes das cidades. Infelizmente, a trilha sonora de Altered Carbon é quase toda composta por músicas mais tradicionais, mais pop, com vocal e tudo mais, e mesmo se encaixando bem nas cenas, acaba tirando muito da personalidade de uma obra Cyberpunk, e isso deixou bastante a desejar. O restante das características foram bem implementados, como a abundancia dos letreiros neon, ruas escuras, armas futuristas, hologramas, carros voadores e tudo mais, mas também foi pouco explorado considerando que na maior parte do tempo os personagens estão em ambientes fechados, e a cidade é mostrada apenas em breves momentos, o que é uma pena.
A série acerta em vários pontos e peca em alguns outros, mas podemos afirmar com certeza que é um prato cheio para os amantes de ficção científica, e eu diria até que é uma série obrigatória para os amantes de Cyberpunk. Seu enredo complexo e rico em detalhes torna tudo atrativo demais, e sendo bem sincero, o seu final foi perfeito e torna desnecessário qualquer tipo de continuação. Tudo se encaixou perfeitamente e prolongar a história daqueles personagens poderia acabar estragando tudo, pois aquele foi o desfecho ideal e se o Netflix resolvesse encerrar a série por aí, com toda certeza ela teria um impacto ainda maior. Obviamente, esse não será o caso, e com toda certeza uma segunda temporada vem aí, dessa vez baseada no segundo livro, chamado Broken Angels. Só espero que o Netflix consiga manter a vindoura temporada com um ritmo interessante igual à primeira, e que seja uma adaptação que consiga complementar bem o seu desfecho, pois daqui em diante tudo parecerá mais um epílogo do que uma continuação. Sem mais, Altered Carbon consegue com êxito complementar nossa biblioteca de conteúdo Cyberpunk com mais conteúdo de qualidade.