A arte, desde a época em que os primeiros hominídeos passaram a
manusear ferramentas e a dominar o fogo, sempre foi uma via para expressar
emoções. Isso é evidenciado pelas pinturas rupestres deixadas por nossos
antepassados em abrigos onde se refugiavam das feras pré-históricas. Essa
manifestação não se limitou a sensações individuais, evoluindo com o tempo
para se tornar uma ferramenta de crítica e transformação social.
Quem não se recorda de assistir na escola a icônica atuação de Charles
Chaplin em “Tempos Modernos”? Frequentemente, professores de Sociologia
ou História exibiam essa obra para incitar nos alunos uma reflexão sobre o
sistema de produção em massa que a humanidade adotou desde a Primeira
Revolução Industrial. Essa análise ocorre em variados gêneros, do drama à
ação, do terror à comédia.
Os documentários são as principais peças audiovisuais com essa
finalidade, destacando-se por apresentar um alto grau de realismo em suas
“denúncias”. As gravações podem demorar anos; os cenários ambientam um
contexto histórico; e os personagens são pessoas do dia-a-dia. O lado negativo
desse tipo de montagem é que os antagonistas não se restringem à criação
fantasiosa de roteiristas. Pelo contrário, são tão reais quanto os problemas que
causam.
Registro cinematográfico de um colonialismo que não acabou
A contextualização acima, voltada para o estilo de filmes que documenta
a realidade, serve para ilustrar a importância de uma obra que teve sua préestreia recentemente em Brasília. O documentário “A Ilusão da Abundância” foi
exibido dia 02/08 no shopping Liberty Mall, no centro da Capital Federal.
Os ingressos esgotaram naquela que seria uma sessão única. As
pessoas, de diversas idades, acompanharam atentas à história de três mulheres
latino-americanas em defesa das terras onde moram. A produção denuncia a
ação de mineradoras multinacionais que especulam as riquezas de regiões
habitadas por povos tradicionais ou pessoas em situação de vulnerabilidade
social.
O documentário revela como grandes empresas se aproveitam da
fragilidade de pequenas comunidades distantes dos centros urbanos e da mídia
tradicional, atuando autoritariamente e desrespeitando direitos civis e a
soberania dos locais.
Uma realidade que precisa ser conhecida
A fala destacada por Larissa Tomé após assistir à película concorda com o que
diz o enunciado. “Acho que é uma luta importante e representativa sim! Este é
mais um espaço para que possamos conhecer as experiências compartilhadas
por essas pessoas, que são as mais afetadas pelas grandes corporações”,
afirmou ela.
As empreiteiras, de maioria europeia, disfarçam interesses comerciais em
acordos bilaterais que, segundo a versão divulgada, beneficiariam ambos os
países, proporcionando recursos aos investidores e progresso às regiões
carentes de desenvolvimento – uma estratégia que atrai o apoio dos governos
locais.
No entanto, apenas as nações do velho continente lucram com essas
iniciativas, enquanto os países subdesenvolvidos continuam amargando baixos
índices de desenvolvimento humano. Isso repete, historicamente, o ciclo do
colonialismo na América Latina, agora reformulado, ilibado e maquiado como
neocolonialismo.
Entretanto, as nações e os latino-americanos mudaram com o tempo.
Desta vez, os colonizadores modernos não contavam com a resistência
equiparável às flechas dos primeiros indígenas que se rebelaram contra
espanhóis e portugueses: três mulheres, distantes geograficamente, mas unidas
na decisão de proteger a terra-natal dos usurpadores estrangeiros.
O enredo acompanha o percurso de três mulheres cujas trajetórias
demonstram resistência diante de desafios marcantes. Uma peruana,
descendente dos povos tradicionais dos Andes, lutou judicialmente para proteger
as águas de um rio considerado sagrado pela tradição ancestral, saindo vitoriosa
em sua batalha contra um conglomerado empresarial.
Em seguida, é mostrado uma líder comunitária hondurenha que se opôs
ao próprio governo e à uma poderosa corporação europeia, conquistando até a
prisão do assassino da mãe que também era ativista.
No Brasil, uma jornalista mineira busca a reparação e responsabilização
da transnacional que, por negligência, causou reincidentes e anunciadas
tragédias: incontáveis vidas humanas e animais perdidas após o colapso de
algumas barragens em diferentes ocasiões, em um estado historicamente
conhecido por sua riqueza mineral.”
De mulher para mulher
Num momento em que a sociedade ocidental está reavaliando as antigas
regras que marginalizavam as mulheres na estrutura social, torna-se ainda mais
significativo que as produções culturais contribuam para essa análise. A
jornalista colombiana Erika González, mesmo que tenha dividido a direção com
o documentarista investigativo belga Matthieu Lietaert, procurou capturar os
sentimentos que apenas elas podem compreender.
Não é coincidência que o documentário acompanhe a trajetória de três
mulheres que desafiaram um poder maior e se tornaram a voz das comunidades
onde vivem. Também não por acaso que o público presenta na pré-estreia era
majoritariamente feminino. Agora, de forma intencional, o filme ao mesmo tempo
em que antecede, também convida para a 7ª Marcha das Margaridas, uma das
maiores manifestações globais em prol da equidade de gênero. A tradicional
caminhada acontecerá em Brasília nos dias 15 e 16 de agosto.
Não é coincidência que o documentário acompanhe o percurso de três mulheres
que desafiaram um poder maior e se tornaram a voz de suas comunidades.
Também não é por acaso que o público presente na pré-estreia era
majoritariamente feminino. Agora, de forma intencional, o filme antecede a 7ª
Marcha das Margaridas, uma das maiores manifestações globais em prol da
igualdade de gênero, convidando a participação no evento que acontecerá em
Brasília nos dias 15 e 16 de agosto.
Concluiu a missão à qual se propôs?
Em resumo, “A Ilusão da Abundância” cumpre o que foi introduzido no início
deste texto: a arte que denuncia, que é quando o cinema cumpre um papel social
ao ecoar a voz e as súplicas de mulheres que enfrentam batalhas árduas à
margem do mundo moderno.
Uma produção que procura sensibilizar a todos, mas, principalmente,
despertar a empatia de mulher para mulher. Um conceito que têm se tornado
cada vez mais conhecido e que pretende abalar as bases do machismo
estrutural: a sororidade. Como expressou Valéria Abraão, espectadora da
sessão exibida ontem:
“A produção me mostrou o quanto eu sou alienada. A gente acha que está
fazendo alguma coisa, mas ao ver todos esses problemas nessa pequena região
em que vivo, percebi que não estou fazendo nada para mudar isso. A beleza e
a grandeza dessas mulheres me tocaram profundamente”, admitiu ela.