Em um cenário onde filmes de heróis e vilões ficam cada vez mais saturados, Coringa: Delírio a Dois pode ser estranhamente considerado como um inesperado e ousado acerto, se olhado dentro dessa perspectiva. Mesmo que custe muitos fãs ao propor que o longa fosse um musical, que logo vão perceber que os números dançantes e cantados não são o maior problema desse filme.
Por mais que a história insista em seguir por esse território arriscado dos musicais, neste caso, é um gênero cinematográfico utilizado de forma convincente e inspirada, e não deve assustar as pessoas que não gostam dele. São outras tomadas de decisões que farão desse longa-metragem um tanto decepcionante para a maioria: o primeiro ponto que vale ressaltar é que Coringa: Delírio a Dois não repete a estrutura provocativa, perturbadora e instigante de seu anterior, lançado há cinco anos atrás – o que, em essência, é algo completamente positivo.
O resultado é uma sequência confusa e insatisfatória em alguns níveis, embora não seja de todo ruim porque a ideia do diretor Todd Phillips claramente foi uma contraproposta do que aconteceu em seu primeiro filme.
É importante relembrar que quando Coringa (2019) estreou no Festival de Veneza e acabou levando o principal prêmio da cerimônia, no mesmo ano, uma das preocupações predominantes entre a mídia era que o filme poderia ser perigoso. A perspectiva sensível e brutal entorno do personagem, vivido fantasticamente pelo ator Joaquin Phoenix na pele de Arthur Fleck, pensava-se, poderia inspirar jovens descontentes a cometer atos de violência em massa, principalmente nas sessões do próprio filme.
Na época, o sucesso foi tão grande que o filme foi indicado a onze Oscars, incluindo Melhor Filme e Melhor Ator, que Phoenix ganhou merecidamente por seu papel titular. Isso, combinado com a ótima recepção do público em forma de bilheteria, tornou uma sequência quase inevitável.
Embora não tenha acontecido nada violento diretamente ligado ao filme, o que poderia ter sido caracterizado por movimentos sociais realmente relevantes a respeito da saúde mental masculina, na verdade, acabou virando piada e memes na internet. Isso parece ter impactado os cineastas e principalmente Todd Phillips com seus produtores, já que Coringa: Delírio a Dois usa a mesma ideia provocativa de seu antecessor para criticar não somente um indivíduo, mas a sociedade que o venera.
Uma coisa que Coringa: Delírio a Dois realmente acerta é que essa versão do vilão não o coloca exclusivamente como uma pessoa má, ele é um espelho e fruto da própria sociedade, mesmo que seus atos não sejam justificáveis. Na realidade, este filme parece direcionado diretamente ao público um pouco interessado demais em figuras mentalmente desvairadas — e feito especialmente para antagonizá-las.
Concluído esse ponto, Coringa: Delírio a Dois é uma continuação direta de Coringa (2019), que narrou a descida de Arthur Fleck à loucura e sua adoção pela persona do palhaço assassino de Gotham. Agora, Fleck não está sozinho e, enquanto está internado em Arkham, à espera de ser julgado pelos seus crimes, ele luta contra a sua dupla personalidade. Porém, Arthur não só encontra o amor, mas também a música que sempre esteve dentro dele.
Muitos provavelmente não apreciarão o conceito e o desfecho corajoso de Todd Phillips, assim como os pontos essenciais que ele levanta no filme. O diretor joga o fan-service pela janela e mergulha num ambiente extremamente complicado ao misturar romance trágico musical atrelado ao drama judicial e suas complicações diante de uma sociedade fragilizada.
No meio disso tudo, a faceta mais intrigante do filme é a sua exploração da dupla identidade de Arthur Fleck como Coringa. Era de se esperar que Joaquin Phoenix estivesse novamente extraordinário na pele do personagem, que parece encaixar como uma luva para o ator. É divertido assistir Phoenix explorando lados ainda mais complexos de sua identidade enquanto canta e dança, um combo que fica incrivelmente fascinante.
E não se pode esquecer do motivo de vermos Phoenix entregando desempenhos memoráveis, afinal sua parceira de cenas é ninguém menos que Lady Gaga no papel de Harleen Quinzel ou mais popularmente conhecida como Harley Quinn, mesmo que esse personagem não seja apresentado como muitos se esperam.
A interpretação de Gaga de Lee/Harley Quinn para Coringa: Delírio a Dois é notoriamente um ponto-chave para os números musicais – já que a artista é mundialmente reconhecida pela voz impecável, que lhe renderam diversos prêmios Grammy e até um Oscar – e ajudam a impulsionar as maiores peças do filme há alturas excepcionais.
O grande diferencial em relação à essência da personagem de Gaga, no entanto, está na forma como Todd Phillips resolveu utilizá-la como uma personagem tridimensional. Diferente da Harley Quinn em diversas adaptações, em Delírio a Dois ela passa de marionete do Coringa para marionetista. Isso funciona como um dispositivo de enredo, com Lee alimentando o narcisismo crônico de Arthur ao mesmo tempo que ela é uma representação dos seguidores dele.
Na maioria do tempo, a personagem de Lady Gaga acaba se tornando subutilizada demais dentro do roteiro, apenas como um canal para um dueto após o outro. Não existe nenhuma grande atuação ou cena de Gaga que valha a uma menção honrosa por seu trabalho como atriz. Mesmo que o filme não seja propriamente sobre sua personagem, ela poderia ter sido utilizada de forma mais inteligente.
Phoenix e Gaga cumprem o propósito de alcançarem um casal desequilibrado que todos conhecem, e os dois cantando juntos são facilmente as cenas mais interessantes do filme. Eles possuem uma química magistral que estimulam e efervescem a trama.
Coringa: Delírio a Dois assume a versatilidade de um musical trágico por meio de uma cinematografia teatral fascinante, que infelizmente se perde em seu ritmo por meio de um roteiro atravessado. O filme propõe com êxito condicionar a qualidade de produção de seu antecessor com cargas submersivas impressionantes, mas isso não é necessário para manter a história convincente e sólida até o fim. É nítido que Todd Phillips tenta criar algo realmente adequado, mas ele não teve pulso firme para atingir o seu ápice com a força necessária para fazer de Coringa: Delírio a Dois uma sequência facilmente aceitável.
O filme estreia em 03 de outubro no Brasil.